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quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

ÁLBUM DA VIAGEM Relatos da expedição etnolúdica às terras da cidade da Bahia

Começo pelo fim, pelo meu último dia na cidade da Bahia (vocês sabem que é assim que os baianos se referem a Salvador - “eu vou pra Bahia” - pode significar ir para a capital do estado). Já um pouco cansado pela jornada que havia incluído visitas a alguns dos principais terreiros matrizes da religião de orixás e um ciclo de idas às bibliotecas da UFBA, o último dia me reserva um encontro com Angela Lühning, que além de professora da Escola de Música desta universidade e uma das maiores autoridades acadêmicas sobre a música do candomblé, é Diretora Secretária do Conselho Diretor da Fundação Pierre Verger.

Pois é no Centro Cultural da fundação que marcamos nossa conversa. A sede fica no meio de uma ladeira que sai da Vasco da Gama, uma avenida grande, em nada diferente daquelas das nossas caóticas cidades de grande porte brasileiras. O que é diferente é a forma como chego até aqui, o soteropolitano tem um jeito muito próprio de indicar caminhos que, no princípio deixa a gente meio aturdido. Mas eu já estava craque em ler as variadas e aparentemente contraditórias indicações das pessoas e cheguei tranquilamente. Como eu disse, é uma ladeira bastante íngreme que começa na avenida, tomo coragem para encarar a subida e vou.

É um espaço bastante agradável e logo de cara se percebe que é ambiente onde acontece um trabalho sócio-educativo importante para a comunidade pobre que se estabeleceu no entorno da casa. Os nomes dos espaços evocam uma Bahia marcada na história e na memória e dos ilustres personagens que a propagaram: a Praça Mestre Bimba, espaço da roda de capoeira, biblioteca Jorge Amado, a sala de informática Roger Bastide, oficina de artes Carybé e assim por diante. A gente imagina o convívio de uma patota como essa e imagina uma Bahia – e um Brasil – muito mais interessante que o cartel de fofocas e veleidades em que se transformou nossa cultura.

Mas naquele oásis as pessoas são atenciosas, a gente vê umas e uns jovens ensaiando algo de teatro, a Angela tem comigo uma conversa esclarecedora, apontando e confirmando caminhos para a pesquisa séria sobre a música sacra dos orixás e, de repente...

No sobrado vermelho que foi a residência do mestre (“ele era d'Oxaguiã, mas seus caminhos eram de Xangô, por isso o vermelho...”, me explica a moça que me guia pelos caminhos da fundação – a fantástica biblioteca de referência, a lojinha sobre a qual falarei depois...), subindo uma estreita escada, no final da qual tem um quadro do Carybé lindíssimo, feito para Verger, logo chegamos a um quarto absolutamente despojado.

Uma cama bastante simples, alguns poucos objetos de arte e imagens, caixas de arquivos, daquelas que se encontram em papelarias - que começam a estimular a imaginação e criar um quadro de uma pessoa meticulosa e detalhista em seu trabalho incansável; os “andadores” relembram que Verger viveu ali até os noventa e tantos anos e sua saúde já inspirava cuidados; a janela dando para aquele verde que ele manteve ou cultivou, buscando alguns dos saberes sobre as plantas sagradas, essência do culto aos orixás aqui e na África...

É quando a gente avista, na parede oposta à porta do quarto, aquelas malas todas. Antigas, enormes, de couro, de um jeito que não se fazem mais... É impossível a gente olhar para elas e não embarcar imediatamente na grande viagem que foi a vida de Pierre Verger. Abandonar-se ao mundo, deixando uma abastada vida familiar parisiense, Roleiflex em punho, não só documentando pessoas, coisas e lugares ao redor do globo mas compondo com eles quadros de uma perfeição geométrica e plástica e de uma valorização da figura humana e sua beleza incríveis. Deve ser por enxergar essa beleza em pescadores, carregadores, devotas, músicos tradicionais ou seja, na chamada “gente simples do povo” que ele buscou aprofundar e estreitar seu contato com os saberes dessa gente. E teria que escolher um lugar para fazê-lo.

Escolheu a Bahia, mais especificamente a Vila América, onde nos legou depois a fundação e esse acervo fantástico. A moça me explica também que a casa fica posicionada com logística perfeita entre alguns dos terreiros mais tradicionais. Descendo a ladeira e, ao cabo dela, dobrando na Vasco da Gama, a gente já está quase no Ilê Axé Oxumaré (de onde, aliás, Verger fez gravações que estão programadas para serem lançadas em 2008). Um pouco mais abaixo a Casa Branca do Engenho Velho e, nas proximidades o Gantois.

Num plano um tanto mais amplo, pode se dizer que, como todo o nordeste brasileiro, a Bahia está num ponto bastante estratégico entre as costas de lá e de cá do Atlântico - América e África - que os movimentos tectônicos separaram há milhões de anos, de forma drástica.
Nesse plano, a casa de Verger se estendia para lá também, de onde a ganância do mercantilismo espalhou, de forma trágica, gente pelo mundo afora.

Outra imagem vem à mente, lembrando daquelas malas e seu couro gasto em tantas idas e vindas nos navios: é a desses “fluxos e refluxos” entre um oceano aberto como um talho, que serviu de passagem para o tráfico negreiro e a diáspora africana. É como se as idas e vindas da Bahia ao Benin e vice-versa fossem pontos de uma sutura, costurando de volta o que a escravidão separou.

Acho que tá bem claro o quanto vale a pena conhecer esse lugar, não? E, enquanto não dá pra ir pessoalmente, vá até o seguinte endereço:
http://www.pierreverger.org/

Boa viagem.
(P.s.: no site, tem 5.500 fotos do homem! Divirtam-se.)

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