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quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

PAPOLAMPA - PRA SABER SEUS SEGREDOS SEREI BAIANO TAMBÉM...

A canção "Bahia com H" de onde vêm os versos do título descrevem as percepções de um visitante embevecido com Soterópolis e é perfeita para ilustrar os argumentos que vou desenvolver a seguir.
(Dá pra ouvir aqui, ó -
http://acervos.ims.uol.com.br/php/index.php?lang=pt - é só fazer uma busca. Aproveite para ver o baú de tesouro de antiguidades musicais. Quem quiser uma versão mais "recente" tem no Lp "Brasil", do João Gilberto, Gil e Caetano - deve ter saído em cd) .

Mas falando em percepções, me vem uma memória de um show do Buda Nagô que assisti no SESC Pompéia. Lá, o filho dele Danilo contou sobre quando foram convidados para compor o tema de abertura da mini-série Teresa Batista Cansada de Guerra. O mestre zen-baiano havia dito então: "está bem, me deixa ler o livro que a gente escreve...". Ao que o Caymmi mais moço retrucou: "pai, é coisa pra televisão, ou seja, pra ontem!" E olha que o livro de meu Amado xará tem...(muitas!) páginas.

Aliás, na memória também ficou uma tese de doutorado da USP chamada "O Mito da Preguiça Baiana", da antropóloga Elisete Zanlorenzi, que analisa e expõe os alicerces preconceituosos da construção desse olhar que lança a pecha de preguiça a toda prática ou trabalho que não acumula ostensivamente algum tipo de capital. Ao baiano, ao negro, ao nordestino e aos brasileiros e brasileiras em geral esse olhar é várias vezes dirigido com desdém, entre muxoxos e encravado em uma feia careta calvinista.

Aliás outra vez, falando num outro Calvino, esse nada careta, suas “Lições Americanas” que nos propuseram seis valores literários a serem preservados neste próximo milênio em que estamos (na minha opinião, extensíveis a todas as artes e mesmo como valores humanos fundamentais: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade e consistência), gostaria de transcrever uma história chinesa contada por ele:

“Entre as múltiplas virtudes de Chuang-Tsê estava a habilidade para desenhar. O rei pediu-lhe que desenhasse um caranguejo. Chuang-Tsê disse que para fazê-lo precisaria de cinco anos e uma casa com doze empregados. Passados cinco anos, não havia sequer começado o desenho. “Preciso de outros cinco anos”, disse Chuang-Tsê . O rei concordou. Ao completar-se o décimo ano, Chuang-Tsê pegou o pincel e num instante, com um único gesto, desenhou um caranguejo, o mais perfeito caranguejo que jamais se viu.”*


Pois então, fazendo de alhos e bugalhos um fio para costurar agora a seda ao sisal, perceberam onde quero chegar? E, para ser bem sincero, gostaria mesmo de chegar a esse ponto.
Fazer um relato de viagem, descrevendo as mais belas e intricadas paisagens usando as seis qualidades ...

O máximo que consigo é avistar ao longe uma rede balançando e lá dentro a gente percebe que há um homem velho, de cabelos de um branco bonito demais. O mínimo de movimento externo não denota que dentro se passam cenários de extremo alvoroço:

O oceano verde de dentro da coluna d'água que deixa entrever algo com movimento de alga e líquidos meneios de mulher. Peixes, pinaúnas, parcel. A falta do fôlego impõe buscar alento na inspiração, rebentando a superfície. Mas, lá fora, além das ondas e da areia o quadro é ainda mais impressionante. O mesmo meneio parece que foi impelido aos coqueiros, que a fresca da tarde beija e balança.
Olhando para cá, a baía da Bahia em que estou imerso, é água de cartão postal: lá, é cidade que cheira a lixo e mostra nesgas de uma beleza estonteante. Fumaça de escapamento de ônibus, vapores de dendê, cadeiras pra cá e pra lá, pedras de calçamento que já foram pisadas por alferes e praças de Santo Antônio. Nos muros, generosos mosaicos se oferecendo ao olhar e ao vandalismo.
Do alto, da janela afresco, a retina pede para ser papel fotográfico, guardar para sempre os giros do sol, da lua, do farol. Os rodopios do caramuru.
As curvas e cores. Bel, Carybés por todos os lados, a grata surpresa Calasans. A luz reflete na água, luz cênica para a Castro Alves, o Modelo, o Lacerda. A beleza mora aqui com uma estranha irmã, a miséria.
Como podem?
E os sons! Exus, oxuns, oxumarês, todo pessoal, exultando com seus sacerdotes de cânticos e couros a dobrar. Ali os orixás vêm, de leques e outros luxos, confortavelmente em corpos estáveis ouvir concertos estalados e retinidos. E comer, dançar. Celebrar.
Cerebrar sobre isso e ser do santo é tarefa para poucos. E a casa dele é bonita, vermelha, já contei como seu espírito ainda a habita.
Pongo do bonde de Todos os Santos e mergulho novamente em sua baía.
Cansado pelas braças da Barra ao Unhão, tento contar aos passantes minhas aventuras e delírios. Falo através de uma grade, que vi o mesmo artista que a fez na casa do Fatumbi e ao lado de um supermercado.
Ninguém me acredita.

Deve ser porque falho miseravelmente. Com vergonha de Calvino e um saco cheio de palavras, pesado, inexatas, recolho a minha verborragia pela areia.

Ao longe, vejo novamente aquele homem velho da rede. Parece que está ali, se balançando, há cinco, dez anos... Mas agora pega um violão e canta com as notas exatas, palavras exatas, a voz grave e leve, a rapidez do vento, a multiplicidade de tipos e crenças de sua gente. E no seu canto consistente eu vejo o coqueiro, a lagoa, a vela, a Rosa, o vestido, o valente.
Eu vejo, como se estivesse pisando sua areia, a praia.

A mais perfeita praia que jamais se viu.
*CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. Tradução Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990: 67.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

PRA POR NA RODA - Pérola Negra cd's

Na verdade, trata-se de uma "resenha" de uma loja e não de uma obra específica. É que a tal loja está cheia delas e uma resenha, afinal, pode ser mais que uma análise crítica de livro ou disco. Olhem lá no "Houaiss" e concordem comigo... ou não!

Mas a loja "Pérola Negra", que fica ali perto do Teatro Castro Alves (no Canela?) e daquele campus da UFBA é um achado precioso mesmo. Não ganhei nada pra escrever isso, pelo contrário, dei uma acabadinha nos erários lampídicos, mas não me arrependo nada.

É uma daquelas lojas que estão para as de livros assim como os livreiros estão para os vendedores de livros. Quero dizer, trata-se de gente que sabe o que está falando e indica/sugere/localiza com propriedade e gentileza. Até aí, tudo bem, deve ter mais umas... cinco? iguais pelos 8.514.876,599 km2 do território brasileiro.

E pra quem sabe o que quer e vai atrás daquelas coisas que você só vai encontrar porque está lá, na cidade protegida por Santo Antônio Guerreiro e abençoada de Exu a Oxalá, então a pérola é "o ouro".

Estou me referindo a produções locais independentes, pequenas tiragens, produtos resultado de pesquisas sérias, etc, etc.= coisa boa, garimpo sonoro de alta lavra.

Então é isso, se duvida do meu entusiasmo dá uma olhada no site deles:

http://www.perolanegracd.com.br/

E, se estiver passando por aqui, dê uma olhada na postagem anterior e vá conferir pessoalmente alguns biscoitinhos que eu trouxe no matulão.

Saúde, sucesso, sossego.

Só love.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

ÁLBUM DA VIAGEM Relatos da expedição etnolúdica às terras da cidade da Bahia

Começo pelo fim, pelo meu último dia na cidade da Bahia (vocês sabem que é assim que os baianos se referem a Salvador - “eu vou pra Bahia” - pode significar ir para a capital do estado). Já um pouco cansado pela jornada que havia incluído visitas a alguns dos principais terreiros matrizes da religião de orixás e um ciclo de idas às bibliotecas da UFBA, o último dia me reserva um encontro com Angela Lühning, que além de professora da Escola de Música desta universidade e uma das maiores autoridades acadêmicas sobre a música do candomblé, é Diretora Secretária do Conselho Diretor da Fundação Pierre Verger.

Pois é no Centro Cultural da fundação que marcamos nossa conversa. A sede fica no meio de uma ladeira que sai da Vasco da Gama, uma avenida grande, em nada diferente daquelas das nossas caóticas cidades de grande porte brasileiras. O que é diferente é a forma como chego até aqui, o soteropolitano tem um jeito muito próprio de indicar caminhos que, no princípio deixa a gente meio aturdido. Mas eu já estava craque em ler as variadas e aparentemente contraditórias indicações das pessoas e cheguei tranquilamente. Como eu disse, é uma ladeira bastante íngreme que começa na avenida, tomo coragem para encarar a subida e vou.

É um espaço bastante agradável e logo de cara se percebe que é ambiente onde acontece um trabalho sócio-educativo importante para a comunidade pobre que se estabeleceu no entorno da casa. Os nomes dos espaços evocam uma Bahia marcada na história e na memória e dos ilustres personagens que a propagaram: a Praça Mestre Bimba, espaço da roda de capoeira, biblioteca Jorge Amado, a sala de informática Roger Bastide, oficina de artes Carybé e assim por diante. A gente imagina o convívio de uma patota como essa e imagina uma Bahia – e um Brasil – muito mais interessante que o cartel de fofocas e veleidades em que se transformou nossa cultura.

Mas naquele oásis as pessoas são atenciosas, a gente vê umas e uns jovens ensaiando algo de teatro, a Angela tem comigo uma conversa esclarecedora, apontando e confirmando caminhos para a pesquisa séria sobre a música sacra dos orixás e, de repente...

No sobrado vermelho que foi a residência do mestre (“ele era d'Oxaguiã, mas seus caminhos eram de Xangô, por isso o vermelho...”, me explica a moça que me guia pelos caminhos da fundação – a fantástica biblioteca de referência, a lojinha sobre a qual falarei depois...), subindo uma estreita escada, no final da qual tem um quadro do Carybé lindíssimo, feito para Verger, logo chegamos a um quarto absolutamente despojado.

Uma cama bastante simples, alguns poucos objetos de arte e imagens, caixas de arquivos, daquelas que se encontram em papelarias - que começam a estimular a imaginação e criar um quadro de uma pessoa meticulosa e detalhista em seu trabalho incansável; os “andadores” relembram que Verger viveu ali até os noventa e tantos anos e sua saúde já inspirava cuidados; a janela dando para aquele verde que ele manteve ou cultivou, buscando alguns dos saberes sobre as plantas sagradas, essência do culto aos orixás aqui e na África...

É quando a gente avista, na parede oposta à porta do quarto, aquelas malas todas. Antigas, enormes, de couro, de um jeito que não se fazem mais... É impossível a gente olhar para elas e não embarcar imediatamente na grande viagem que foi a vida de Pierre Verger. Abandonar-se ao mundo, deixando uma abastada vida familiar parisiense, Roleiflex em punho, não só documentando pessoas, coisas e lugares ao redor do globo mas compondo com eles quadros de uma perfeição geométrica e plástica e de uma valorização da figura humana e sua beleza incríveis. Deve ser por enxergar essa beleza em pescadores, carregadores, devotas, músicos tradicionais ou seja, na chamada “gente simples do povo” que ele buscou aprofundar e estreitar seu contato com os saberes dessa gente. E teria que escolher um lugar para fazê-lo.

Escolheu a Bahia, mais especificamente a Vila América, onde nos legou depois a fundação e esse acervo fantástico. A moça me explica também que a casa fica posicionada com logística perfeita entre alguns dos terreiros mais tradicionais. Descendo a ladeira e, ao cabo dela, dobrando na Vasco da Gama, a gente já está quase no Ilê Axé Oxumaré (de onde, aliás, Verger fez gravações que estão programadas para serem lançadas em 2008). Um pouco mais abaixo a Casa Branca do Engenho Velho e, nas proximidades o Gantois.

Num plano um tanto mais amplo, pode se dizer que, como todo o nordeste brasileiro, a Bahia está num ponto bastante estratégico entre as costas de lá e de cá do Atlântico - América e África - que os movimentos tectônicos separaram há milhões de anos, de forma drástica.
Nesse plano, a casa de Verger se estendia para lá também, de onde a ganância do mercantilismo espalhou, de forma trágica, gente pelo mundo afora.

Outra imagem vem à mente, lembrando daquelas malas e seu couro gasto em tantas idas e vindas nos navios: é a desses “fluxos e refluxos” entre um oceano aberto como um talho, que serviu de passagem para o tráfico negreiro e a diáspora africana. É como se as idas e vindas da Bahia ao Benin e vice-versa fossem pontos de uma sutura, costurando de volta o que a escravidão separou.

Acho que tá bem claro o quanto vale a pena conhecer esse lugar, não? E, enquanto não dá pra ir pessoalmente, vá até o seguinte endereço:
http://www.pierreverger.org/

Boa viagem.
(P.s.: no site, tem 5.500 fotos do homem! Divirtam-se.)