A canção "Bahia com H" de onde vêm os versos do título descrevem as percepções de um visitante embevecido com Soterópolis e é perfeita para ilustrar os argumentos que vou desenvolver a seguir.
(Dá pra ouvir aqui, ó -
http://acervos.ims.uol.com.br/php/index.php?lang=pt - é só fazer uma busca. Aproveite para ver o baú de tesouro de antiguidades musicais. Quem quiser uma versão mais "recente" tem no Lp "Brasil", do João Gilberto, Gil e Caetano - deve ter saído em cd) .
(Dá pra ouvir aqui, ó -
http://acervos.ims.uol.com.br/php/index.php?lang=pt - é só fazer uma busca. Aproveite para ver o baú de tesouro de antiguidades musicais. Quem quiser uma versão mais "recente" tem no Lp "Brasil", do João Gilberto, Gil e Caetano - deve ter saído em cd) .
Mas falando em percepções, me vem uma memória de um show do Buda Nagô que assisti no SESC Pompéia. Lá, o filho dele Danilo contou sobre quando foram convidados para compor o tema de abertura da mini-série Teresa Batista Cansada de Guerra. O mestre zen-baiano havia dito então: "está bem, me deixa ler o livro que a gente escreve...". Ao que o Caymmi mais moço retrucou: "pai, é coisa pra televisão, ou seja, pra ontem!" E olha que o livro de meu Amado xará tem...(muitas!) páginas.
Aliás, na memória também ficou uma tese de doutorado da USP chamada "O Mito da Preguiça Baiana", da antropóloga Elisete Zanlorenzi, que analisa e expõe os alicerces preconceituosos da construção desse olhar que lança a pecha de preguiça a toda prática ou trabalho que não acumula ostensivamente algum tipo de capital. Ao baiano, ao negro, ao nordestino e aos brasileiros e brasileiras em geral esse olhar é várias vezes dirigido com desdém, entre muxoxos e encravado em uma feia careta calvinista.
Aliás outra vez, falando num outro Calvino, esse nada careta, suas “Lições Americanas” que nos propuseram seis valores literários a serem preservados neste próximo milênio em que estamos (na minha opinião, extensíveis a todas as artes e mesmo como valores humanos fundamentais: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade e consistência), gostaria de transcrever uma história chinesa contada por ele:
“Entre as múltiplas virtudes de Chuang-Tsê estava a habilidade para desenhar. O rei pediu-lhe que desenhasse um caranguejo. Chuang-Tsê disse que para fazê-lo precisaria de cinco anos e uma casa com doze empregados. Passados cinco anos, não havia sequer começado o desenho. “Preciso de outros cinco anos”, disse Chuang-Tsê . O rei concordou. Ao completar-se o décimo ano, Chuang-Tsê pegou o pincel e num instante, com um único gesto, desenhou um caranguejo, o mais perfeito caranguejo que jamais se viu.”*
Pois então, fazendo de alhos e bugalhos um fio para costurar agora a seda ao sisal, perceberam onde quero chegar? E, para ser bem sincero, gostaria mesmo de chegar a esse ponto.
Fazer um relato de viagem, descrevendo as mais belas e intricadas paisagens usando as seis qualidades ...
O máximo que consigo é avistar ao longe uma rede balançando e lá dentro a gente percebe que há um homem velho, de cabelos de um branco bonito demais. O mínimo de movimento externo não denota que dentro se passam cenários de extremo alvoroço:
O oceano verde de dentro da coluna d'água que deixa entrever algo com movimento de alga e líquidos meneios de mulher. Peixes, pinaúnas, parcel. A falta do fôlego impõe buscar alento na inspiração, rebentando a superfície. Mas, lá fora, além das ondas e da areia o quadro é ainda mais impressionante. O mesmo meneio parece que foi impelido aos coqueiros, que a fresca da tarde beija e balança.
Olhando para cá, a baía da Bahia em que estou imerso, é água de cartão postal: lá, é cidade que cheira a lixo e mostra nesgas de uma beleza estonteante. Fumaça de escapamento de ônibus, vapores de dendê, cadeiras pra cá e pra lá, pedras de calçamento que já foram pisadas por alferes e praças de Santo Antônio. Nos muros, generosos mosaicos se oferecendo ao olhar e ao vandalismo.
Do alto, da janela afresco, a retina pede para ser papel fotográfico, guardar para sempre os giros do sol, da lua, do farol. Os rodopios do caramuru.
As curvas e cores. Bel, Carybés por todos os lados, a grata surpresa Calasans. A luz reflete na água, luz cênica para a Castro Alves, o Modelo, o Lacerda. A beleza mora aqui com uma estranha irmã, a miséria.
Como podem?
E os sons! Exus, oxuns, oxumarês, todo pessoal, exultando com seus sacerdotes de cânticos e couros a dobrar. Ali os orixás vêm, de leques e outros luxos, confortavelmente em corpos estáveis ouvir concertos estalados e retinidos. E comer, dançar. Celebrar.
Cerebrar sobre isso e ser do santo é tarefa para poucos. E a casa dele é bonita, vermelha, já contei como seu espírito ainda a habita.
Pongo do bonde de Todos os Santos e mergulho novamente em sua baía.
Cansado pelas braças da Barra ao Unhão, tento contar aos passantes minhas aventuras e delírios. Falo através de uma grade, que vi o mesmo artista que a fez na casa do Fatumbi e ao lado de um supermercado.
Ninguém me acredita.
Deve ser porque falho miseravelmente. Com vergonha de Calvino e um saco cheio de palavras, pesado, inexatas, recolho a minha verborragia pela areia.
Ao longe, vejo novamente aquele homem velho da rede. Parece que está ali, se balançando, há cinco, dez anos... Mas agora pega um violão e canta com as notas exatas, palavras exatas, a voz grave e leve, a rapidez do vento, a multiplicidade de tipos e crenças de sua gente. E no seu canto consistente eu vejo o coqueiro, a lagoa, a vela, a Rosa, o vestido, o valente.
Eu vejo, como se estivesse pisando sua areia, a praia.
A mais perfeita praia que jamais se viu.
*CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. Tradução Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990: 67.