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terça-feira, 17 de março de 2009

CANÇÕES CERTAS - O FOLHETIM, PARTE 01.


Era um dia desses de meio de semana, ou seja: não era nem o fim dela e suas baladas e nem a segundona braba, herança da mancada de Adão. Falar no maridão de Eva trazia à mente o pecado original e a simples menção desse dogma católico projetava na tela da imaginação, ao invés de imagens de um clip maluco com flashes de roupas vermelhas de cardeais, anelões e cruzes; folhas de parreira e cobras em livros com iluminuras; projetava era a possível trilha desse filme, em falantes ao lado e atrás da tela soando alto: "todo dia, toda noite, toda hora, toda madrugada, momento e manhã..."



Aliás, vinha sendo sempre assim: aquela trilha sonora obsessiva, composta de canções do repertório de quarentões como ele, que se sentia ainda mais anacrônico com aqueles temas da era do vinil, como lembretes de tudo que estava acontecendo: "quando olho no espelho / estou ficando velho e acabado..."



Começou a cultivar aquilo. Se não pode vencê-los... A união a eles, a esses tipos de tiques nervosos cantados internamente, veio com a tentativa de comunicar tudo com trechos extraídos daquele cancioneiro maluco que tinha sido sempre sua fonte de influências musicais. E daí ao início de uma certa maestria em se expressar com letras que iam do poetinha a Toinho do Rojão foi um pequeno passo.



É lógico que tudo se dava no plano de seus pensamentos mais recônditos, inclusive já estava pintando um medo de demonstrar o que se passava ali na discoteca mental, mas por enquanto parecia que ninguém percebia lá dentro a jukebox trocando de bolacha conforme a situação exigia.

Caso contrário: "dizem que sou louco / por eu ser assim..."



Mas já estava era bem à vontade com aquilo. Andando pela rua lá vinha Jorge em seu auxílio: "gostosa, ela é gostosa / o que 'tá pegando é que ela mora muito longe"; ou vinha algo mais abstrato no fim do dia e no começo de um rush que não parecia que não ia acabar nunca: "- pra semana / - o sinal / - eu procuro você / - vai abrir...".

Mais abstrato, mas não menos expressivo. E como a conversa era dele com ele mesmo, já estava começando a não precisar mais ter aquela obrigação de ser uma comunicação exata, objetiva. No começo, no auge da ambição dessas habilidades, ele chegou a se imaginar capaz de pedir um número três naquelas lanchonetes automatizadas de fast-food, mas com o detalhe de que não ia querer com cebola. A gente falando português claro e em alto e bom som já não consegue...



Mas agora a ambição era outra. Tinha virado uma coisa mais reflexiva, mais naquele teor de buscar companhia de si mesmo em meio a uma certa vocação para a solidão, como no tempo em que inventava longos roteiros para suas brincadeiras com o velho brinquedo de Forte Apache.



Era mais algo como: "certas canções que ouço / cabem tão dentro de mim / que perguntar carece / como não fui eu que fiz?".

Foi então que percebeu que não estava mais ouvindo música. "Well, I'm my own walkman".

Pelo menos não estava ouvindo em CD, rádios, internet, etc. Tudo bem, sua capacidade de ouvir dentro do coco estava boa, e já estava se aventurando por letras em outras línguas mas - "ne me quitte pas" - nada substitui o bom velho ato de ouvir um som. Acho que nem o Mozart, ali no filme, ouvindo a peça toda antes mesmo dela (o Réquiem) existir, nem ele nem o Mcferrin conseguiriam ficar sem ouvir uma "musiquinha" aqui do lado de fora da caixola.

Então, resolveu ouvir novamente sua velha e surrada discoteca, agora em versão digital. Era um monte de cd e mp3 mas, no fundo, era praticamente uma versão atualizada daquilo que já passara pelas agulhas de suas vitrolas.

Tomou um murro!
Tinha ficado muito tempo sem ouvir, mesmo. Tanto que já nem lembrava a última vez, quando e como, tinha ouvido aquelas coisas todas. Aqueles caras e mulheres tinham mesmo muito a dizer, e não eram só as letras: acordes que contavam histórias, vozes que levantavam pedras e mostravam significados escondidos entre o limo cotidiano da palavra, interpretações que botavam significados na gangorra, arranjos que construíam no vento catedrais e palhoças e mais, e mais, e mais...



Queria, então, contar para todo mundo o que estava vendo, que nem menino que volta de viagem e despeja uma enxurrada de relatos de encantos: “- mãe, você precisava ver o tamanho do brinquedo e ele subia devagarinho...”



Mas já não era mais menino, quer dizer, andava meio cascudo de tanto tentar compartilhar seus entusiasmos e se sentir um falante de aramaico num mundo sem tradução simultânea. Mas aquilo tudo ficava lá dentro, pedindo para sair e, só assim, se tornar algo vivo.
Não sabia mais o que fazer para se acertar entre aquelas duas correntes: uma que forçava para dizer coisas e outra que cobrava: como? E para quem? Para que?



Pegou o violão e foi para o bar tocar.